IA não é uma representação da humanidade – 05/09/2023 – Tec
Em 1970, um professor de engenharia japonês chamado Masahiro Mori escreveu um artigo científico interessante, sugerindo que a reação de uma pessoa a um robô mudaria, passando de afinidade para rejeição, quanto mais realista o robô se tornasse. Ele descreveu esse fenômeno como o “vale da estranheza”.
As crianças podem adorar robôs de brinquedo, que são difíceis de confundir com um ser vivo. Mas ficamos perturbados quando vemos robôs físicos –ou, hoje em dia, avatares digitais— que se assemelham muito com humanos e percebemos que não são humanos.
O que acontece, porém, quando nossas criações artificiais se tornam tão convincentes que atravessam o vale da estranheza e chegam ao outro lado? Para melhor ou para pior, podemos descobrir a resposta em breve, pelo menos no mundo digital.
O lançamento de ferramentas poderosas de criação de imagem por inteligência artificial generativa, como o Dall-E 2 e o Runway, tem possibilitado a criação de alguns vídeos sintéticos chamativos, estrelados por falsos humanos, embora eles ainda não sejam suficientemente bons para serem confundidos com humanos reais.
Tome-se o caso de “The Frost”, filme experimental de 12 minutos de duração sobre catástrofes ambientais produzido pela companhia de vídeo Waymark, de Detroit. Um roteirista humano inseriu um roteiro no Dall-E 2, que então gerou todas as tomadas do filme. O resultado é um filme divertido, se bem que perturbador, sobre exploradores que acabam encalhados na Antártida sem ter como sair. Parece mais um filme de animação que TV-realidade.
Roteiristas e atores estão tão preocupados com o uso crescente de IA que estão em greve nos Estados Unidos, reivindicando a adoção de restrições ao uso da tecnologia pelos estúdios de Hollywood e os serviços de streaming.
Mas no festival de cinema Runway AI, realizado em Nova York este ano, cineastas independentes se derramaram em elogios às possibilidades de usar modelos de IA interativa para acelerar a rapidez, reduzir os custos e ampliar as possibilidades criativas da produção de filmes. “Este é um momento incrivelmente empolgante”, disse o cineasta Paul Trillo. “Nunca antes vimos nada assim.”
Criações atingem de bebedores de cerveja a republicanos
Não obstante os avanços tecnológicos recentes, ainda estamos longe do momento em que a IA generativa será capaz de criar filmes inteiros como “Barbie” e “Oppenheimer“, sucessos deste verão. Mas esses modelos já estão sendo usados para ajudar a criar vídeos musicais irreverentes e comerciais para marcas como Bud Light, Uber, Nike e chocolate Terry’s.
Alguns deles, como Synthetic Summer, um comercial surreal de cerveja produzido pela firma londrina Private Island, que virou meme na internet este ano, brincaram com as imperfeições bizarras da tecnologia, quando o rosto dos tomadores de cerveja se fundiu com as garrafas da bebida. Explorar o vale da estranheza pode ser divertido, especialmente quando a pessoa está bêbada.
Algo mais perturbador é que alguns políticos estão usando IA generativa para sintetizar imagens. Em junho, a campanha do governador republicano da Flórida Ron DeSantis lançou um vídeo com fotos aparentemente fake de Donald Trump abraçando Anthony Fauci, o ex-assessor médico chefe que foi demonizado por muitos republicanos por ter defendido os lockdowns durante a pandemia de Covid.
Os custos da produção rápida em grande escala de vídeos seletivamente direcionados caíram muito. E a probabilidade de proliferação desse tipo de imagem durante a campanha presidencial americana cresceu após a decisão tomada na semana passada pelo X (ex-Twitter) de abolir sua proibição de anúncios políticos, que vigorou por quatro anos.
‘IA não é uma representação da humanidade’
Wasim Khaled é o co-fundador da Blackbird AI, startup sediada no estado de Nova York que combate a desinformação. Ele me disse que já atravessamos o vale da estranheza em matéria de imagens paradas.
Uma pesquisa feita na Alemanha este ano pela companhia de vídeo Syzygy Group constatou que apenas 8% dos entrevistados identificou corretamente a foto de um rosto humano real, quando justaposta com três outras imagens geradas por IA. É apenas questão de tempo para as imagens em movimento também passarem pelo vale da estranheza.
Mas Khaled sugere que a internet já vem deturpando nossas percepções da realidade há algum tempo, de qualquer maneira. As imagens de pessoas que vemos com mais frequência provavelmente são fotos fotoshopadas no Instagram ou fotos retocadas de atores de cinema em revistas, e essas fotos são usadas para treinar modelos de IA. “A IA não é uma representação da humanidade”, ele diz. “É uma representação da versão digital da humanidade, que é uma aberração ou um exagero do que nós somos.”
Isso levanta a possibilidade de estarmos ingressando em um mundo em que versões artificiais da realidade pareçam mais reais que a própria realidade. Por alarmante isso possa soar, alguns artistas não achariam isso estranho. Como disse Pablo Picasso certa vez: “Tudo o que você pode imaginar é real”. E as máquinas estão ampliando inexoravelmente os limites de nossa imaginação.
Tradução de Clara Allain
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